O uso de plantas sagradas remonta a milhares de anos e pode ser identificado em inúmeras culturas pelo mundo. De Norte a Sul e de Leste a Oeste do globo, encontramos menções a essas mestras curadoras, que nos abrem as portas da consciência para um entendimento mais profundo da nossa realidade.
Uma dessas plantas é a vijaya (विजया) ou, como a conhecemos hoje em dia, cannabis. Mencionada nos papiros egípcios, cultivada pelos povos nativos da América Latina e presente em praticamente todo o globo terrestre, a cannabis também ocupou um lugar de destaque na Medicina Ayurveda por milhares de anos.
Vijaya: uma das cinco ervas sagradas
Mencionada nos textos védicos e também no Shiva Purana como uma das cinco ervas sagradas, ao lado da soma, cuja identidade continua sendo um mistério, a vijaya recebe os títulos de rainha das ervas, erva dos imortais e erva de Deus.
Na mitologia, a cannabis surge no mundo com a agitação do oceano de leite, quando uma gota da Amrta (néctar dos deuses) cai na terra. Essa gota se transforma em uma planta, que é chamada de vijaya, cujo significado é triunfo ou vitória.
Associada a Shiva, vijaya também é conhecida como “aquela que aniquila” e “aquela que conquista siddhi”. Siddhi são habilidades sutis de manipulação dos elementos, ou panchamahabhutas, como caminhar sobre a água, mergulhar na terra ou transcender o tempo-espaço.
A cannabis também é comparada à contraparte feminina de Shiva, isto é, Shakti, que encarnou primeiramente como Sati e depois como Parvati. Além disso, ela está associada a uma das vinte e quatro emanações de Lakshmi e à própria Deusa Durga.
Cannabis: um dos 64 divyaushadhi
Rasa shastra, a alquimia ayurvédica, considera os 64 divyaushadhi como ervas divinas, capazes de solidificar o mercúrio.
De acordo com o Anandakanda, uma das obras mais importantes de rasa shastra, a cannabis mudou ao longo do tempo. Primeiramente, ela era branca, depois se tornou vermelha, em seguida amarela e agora verde.
As plantas podem ter uma, três, cinco, sete, nove, dez, onze ou treze folhas, sendo que é a planta feminina quem proporciona os efeitos psicoativos.
Durante o cultivo, colheita e processamento da cannabis, entoa-se mantras que pedem felicidade, bem-aventurança e triunfo nos três mundos.
Vijaya também é considerado um dos 68 siddhi aushadhi, isto é, ervas que promovem poderes especiais, como a perfeição do corpo e transmutação de metais.
Vale lembrar que a linguagem alquímica é simbólica e representa processos internos de transmutação do ser. Ou seja, não estamos falando especificamente de metais, mas sim de transformações pelas quais o ser humano deve passar para atingir um estado aperfeiçoado.
Benefícios medicinais da cannabis no Ayurveda
Embora não vejamos muitas pessoas indicando a cannabis de forma terapêutica no Ayurveda (até porque ainda existem muitos tabus em relação ao uso da planta), a verdade é que os textos clássicos do Ayurveda trazem muitos benefícios dessa erva, também conhecida como bhanga.
O Anandakanda cita como benefícios de vijaya: o alívio da dor no baço, cura da epilepsia e da lepra. Também cita a erva como protetora e promotora de conhecimento. Além disso, ela aumenta o peso e a virilidade.
Além disso, usamos a erva para tratar doenças que provocam catarro e dor intensa, bem como um importante rasayana, promovendo longevidade.
Outros benefícios da cannabis são a melhora da digestão, estímulo ao apetite, redução da ansiedade e tratamento para doenças do sistema nervoso.
Segundo o Bhavaprakash Nighantu, bhanga é amarga, logo, pacifica kapha dosha. É de fácil digestão, quente em potência, promove o agni e pode causar constipação. Também produz confusão, ilusão, excesso de fala e pode levar à intoxicação.
Em pequenas quantidades, a cannabis é antiespasmódica, analgésica, sedativa e protetora estomacal. Em quantidades moderadas é um poderoso afrodisíaco.
Uma das formulações mais conhecidas que levam a cannabis é a trailokya vijaya vati, que tem efeito direto nos neurônios motores. Nesse sentido, podemos usá-la em casos de esclerose múltipla e esclerose lateral amiotrófica, entre outras.
Pessoas com doenças articulares, como artrite reumatóide e lúpus, também podem se beneficiar dessa formulação, bem como pessoas que sofrem de convulsões.
Além disso, trailokya vijaya vati oferece alívio aos efeitos colaterais da quimioterapia, já que traz na formulação outras ervas, como a triphala, trikatu e guggulu, além de vamsha (Bambusa arundinacea).
Mas, como toda planta, a vijaya também possui efeitos colaterais que podem prejudicar a saúde.
Efeitos colaterais do uso de vijaya
Entre os efeitos colaterais citados no Anandakanda, encontramos olhos avermelhados, boca e língua secas, fome, sede e sono conturbado. Além disso, pode provocar problemas de memória e concentração, desequilíbrio emocional, zumbido no ouvido e desmaios
O Bhavaprakash Nighantu complementa, afirmando que o uso excessivo de vijaya pode levar à perda de peso e impotência.
Como você pode ver, a cannabis oferece muitos efeitos positivos, conhecidos há milhares de anos. Foi a desvirtuação do seu propósito medicinal que fez com que essa planta sagrada fosse considerada uma droga e, consequentemente, proibida em boa parte do mundo.
A Natureza nos provê de tudo o que precisamos para ter uma vida mais saudável e harmoniosa. Cabe a nós usar esses recursos da forma apropriada, respeitando esses seres sagrados e sua sabedoria.
Obrigada por me ler até aqui e a gente se fala no próximo artigo.
Eve.