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Como bem diz o Charaka Samhita, somos um epítome do Universo. Ou seja, tudo o que acontece no macrocosmos, acontece também no microcosmos, isto é, em nossos corpos. E um dos processos mais importantes que acontecem tanto dentro quanto fora de nós é o de transformação, que conhecemos como agni, no Ayurveda.

Para algumas pessoas, agni é apenas o processo digestivo. Mas, se pararmos para pensar de uma forma mais ampla, agni é todo tipo de transformação pela qual um ser vivente pode passar.

Podemos observar isso tanto de uma forma externa, como um tronco de árvore queimado em uma fogueira até que se torne cinzas, ou os complexos processos metabólicos pelos quais nossos organismos passam do nascimento até a morte.

A captação de uma imagem externa, como um pôr do sol, até que se torne uma memória na sua mente, também é obra de agni. Da mesma forma, um sentimento que é internalizado e traz aprendizado ao longo do tempo é uma forma de agni, isto é, de transformação que ocorre no seu interior.

Neste artigo, minha proposta é irmos um pouquinho além do entendimento comum de agni no Ayurveda, resgatando seu significado simbólico, mitológico e, claro, prático.

Agni e seus inúmeros significados

Agni é uma palavra em sânscrito cuja tradução pode ser fogo, brilho ou luminosidade. Também está associada à geração de calor.

Essa força é tão importante que o Rig Veda, o mais antigo de todos os Vedas, inicia fazendo um louvor a Agni, caracterizado por ser o sacerdote escolhido, guardião da Lei Eterna e governante dos sacrifícios.

Essa Lei Eterna, segundo os Vedas, é Rta, que pode ser sintetizada como a harmonia com a Natureza, que é dinâmica e está em eterno movimento. Portanto, a transformação da Natureza é o reino de Agni.

Ao mesmo tempo, Agni é o governante dos sacrifícios porque a transformação é a força subjacente à vida e à morte. Tudo o que morre de forma aparente para nós, tudo o que é sacrificado, na verdade, está se transformando em outra coisa. E assim, Agni é também o regente da transmutação da matéria.

Justamente por isso, ele é comparado ao ouro em rasa shastra ou a alquimia no Ayurveda. O ouro simboliza o estado purificado da matéria bruta, o alcance da iluminação ou moksha.

Em ganitashastra, a ciência dos números, agni é o número três. Ou seja, é o que conecta o mundo espiritual e o mundo material. Não à toa, Agni é considerado a divindade mediadora entre os deuses e os humanos, segundo os Puranas.

No Sama Veda, Agni é comparado à fonte da sabedoria, dissipador da escuridão, destruidor dos inimigos e das doenças. Ou seja, ele é a transformação da ignorância em sabedoria. E é por meio deste processo de aquisição de sabedoria que podemos enfrentar nossos inimigos e as doenças.

Por fim, Agni também é considerado uma das manifestações de Shiva, Rudra. Nesse sentido, retoma a ideia do fogo transformador, que a tudo consome para novamente renascer.

Agni como um dos panchamahabhutas

Na manifestação do Universo, encontramos agni como um dos cinco mahabhutas ou grandes elementos constituintes da matéria.

Ele é o intermediário entre os elementos mais sutis, akasha (espaço) e vayu (ar), e os mais densos, jala (água) e prthvi (terra).

Essa característica dá uma posição de destaque a agni, pois ele é tanto material quanto imaterial, ou seja, é o mediador entre os deuses e os humanos, como vimos anteriormente.

Como terceiro elemento da manifestação — lembra que agni é o número 3, em ganitashastra? — ele carrega consigo tanto as propriedades de akasha quanto de vayu. Nesse sentido, para se manifestar, agni precisa tanto de espaço (akasha) quanto de ar (vayu). Sem eles, agni não seria conhecível para nós.

Sendo um dos panchamahabhutas, agni está presente em tudo o que existe, que é passível de ser reconhecido pelos nossos sentidos. Portanto, todas as coisas materiais têm potencial de transformação.

Agni é o calor gerado pelo movimento de vayu em akasha. Portanto, representa todas as fontes de calor no mundo manifesto. Nesse sentido, de acordo com o Sama Veda, ele pode assumir três grandes manifestações: o Sol, o relâmpago e o fogo, tal qual o conhecemos.

Agni no Ayurveda: a razão de ser da vida

Segundo o Charaka Samhita (Ca.Ci.15:3-4), dehagni (agni do corpo) ou jatharagni é a razão de ser da vida, o que mantém a longevidade dos seres vivos. A extinção de jatharagni leva à morte.

Se você leu o artigo Vayu: muito mais do que um dosha, sabe que vayu é o que mantém os corpos dos seres vivos unidos. Mas como a natureza de vayu é o movimento contínuo, a tendência é que essa união não seja permanente.

Por esse motivo, precisamos repor aqueles elementos que se vão dos nossos corpos pelo movimento contínuo de vata dosha. Essa reposição é feita por meio da alimentação.

Porém, não podemos simplesmente incorporar uma maçã, um punhado de arroz ou um pedaço de carne aos nossos corpos. Precisamos transformar esses alimentos em uma unidade de medida comum entre todas as coisas no Universo: os panchamahabhutas.

É neste momento que entra o deha agni, isto é, o agni do corpo. Ele é o responsável por transformar tudo à nossa volta em panchamahabhutas, de modo que nossos corpos possam assimilar esses elementos e assim se refazer.

Quanto mais tempo consigamos manter este processo em andamento, mais tempo viveremos. Afinal, nossos corpos terão maior capacidade de se reconstituir. É por esse motivo que o agni é a base da vida.

Em outras palavras, sem um bom agni, perdemos nossa capacidade regenerativa e damos mais espaço para que vayu aja de acordo com a sua natureza e acelere seu movimento, levando-nos à morte — ou transmutação, se você preferir.

Agni e o processo digestivo no Ayurveda

De acordo com os textos clássicos do Ayurveda, o kayagni (agni do corpo) é dividido em treze manifestações:

  • 01 jatharagni (agni principal);
  • 07 dhatuagni (agnis dos tecidos);
  • 05 buthagni (agnis dos panchamahabhutas).

O jatharagni, também conhecido como dehagni ou kayagni, é o nosso principal agni, aquele responsável pela primeira digestão dos alimentos. Essa digestão ocorre com auxílio de samana vayu e kledaka kapha, que são subdivisões de vata e kapha dosha, respectivamente.

Em seguida, o alimento digerido por jatharagni passa por um segundo processo de transformação, agora no nível dos dhatus ou tecidos corporais. 

Cada um dos dhatus vai digerir as substâncias que chegam até ele, de modo que possa se refazer dos desgastes diários de suas atividades.

Por fim, existe um terceiro processo de digestão, a nível de panchamahabhutas. Esta é a etapa mais sutil de assimilação de nutrientes em nosso organismo e depende de um bom funcionamento das duas etapas anteriores para que seja bem-sucedida.

Caso contrário, seu corpo fica subnutrido, incapaz de se refazer completamente do desgaste gerado pelos inúmeros processos fisiológicos. Conforme o tempo passa e o problema não é sanado, começam a surgir desequilíbrios, que podem se apresentar como doenças.

Agni e seus desequilíbrios

Quando o agni do corpo está em desequilíbrio, ele pode se apresentar de três formas:

  • vishamagni: errático
  • mandagni: fraco
  • tikshnagni: forte

Um agni fraco leva à indigestão, que pode acarretar em sintomas como sensação de peso, distensão abdominal e flatulência, por exemplo. Já um agni forte demais pode causar queimação, refluxo ou diarreia.

O agni errático é aquele que se apresenta ora forte, ora fraco, causando alternância entre constipação e diarreia, distensão abdominal após as refeições, entre outros sintomas.

Quando o agni está equilibrado, chamamos de samagni. Isso porque a palavra sama significa igual, em equilíbrio. Neste caso, não há sintomas e você digere os alimentos da forma adequada.

Essa simples observação a respeito do seu processo digestivo pode trazer inúmeros insights sobre a sua saúde de um modo geral. Isso porque a alimentação é um dos três pilares da saúde no Ayurveda e tem influência direta sobre a qualidade do seu agni.

Da mesma forma, o agni impacta em outros processos do organismo. Portanto, outros sintomas, como problemas menstruais, ganho ou perda de peso, gastrite ou até mesmo um ressecamento de pele podem apontar para um agni em desequilíbrio.

Como você pode ver, o Ayurveda é um sistema de medicina que considera e honra a complexidade de cada ser vivo. Diante disso, para seguirmos suas orientações e assim obter mais saúde, precisamos compreender que cada processo interno impacta nos demais.

Além disso, o Ayurveda também nos mostra que o nosso organismo nada mais é do que um reflexo dos processos que acontecem na Natureza.

Nesse sentido, ao compreendermos o que está por trás das histórias e da cosmovisão indiana, podemos nos aproximar um pouco mais do pensamento que deu origem a esta ciência e que a faz tão atual hoje quanto há cinco mil anos.

Te agradeço por ter me lido até aqui e, caso queira continuar sua exploração sobre o Ayurveda, sugiro que você se aprofunde um pouco mais sobre a Prakrti, a nossa constituição natural.

Um forte abraço e a gente se vê no próximo artigo.

Eve.

Évelim Wroblewski

Évelim Wroblewski é terapeuta Ayurveda especializada em Ginecologia Ayurveda e Ginecologia Natural. Possui Formação em Medicina e Herbolaria Tradicional Andina e Formação em Partería Ancestral Andina. Cursa Formação em Kaya Chikitsa (Medicina Interna pelo Ayurveda), Especialização em Manas Vijñana (Psicologia e Psiquiatria pelo Ayurveda) e Especialização em Medicina Tradicional e Cosmovisão Indoamericana.

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