Quando estudamos conhecimentos tão antigos como o Ayurveda ou mesmo a Medicina Kemética (egípcia) e Medicina Andina, temos que tomar certos cuidados. E um dos mais importantes é não empregar a nossa mentalidade atual para compreender esses ensinamentos.
Pelo contrário, precisamos mergulhar fundo no contexto sócio-político-cultural da época, desbravar a cosmovisão desses povos, compreender sua interpretação de mundo para, só então, caminhar com segurança por estes conhecimentos e trazermos à tona toda a sabedoria contida neles.
Neste artigo, minha proposta é refletirmos se existe um “Ayurveda sem misticismo” ou se essa afirmação carece de uma compreensão mais profunda sobre a própria origem do Ayurveda e da civilização do Vale do Indo.
Continua comigo?
Para começar, o que é misticismo?
Para começarmos a elucidar a questão sobre misticismo e Ayurveda, precisamos, antes de tudo, compreender o que é misticismo.
Misticismo vem do grego mystikos, que significa a experiência direta da divindade (Deus, Jesus Cristo, Maomé, Buddha, Krishna — como você queira chamar). Nesse sentido, toda e qualquer religião ou crença espiritual é mística em essência.
Erroneamente, muitas pessoas costumam usar a palavra misticismo como sinônimo de superstição, que vem do grego superstitio, cujo significado é “medo excessivo dos deuses”.
Um exemplo de superstição é que quebrar um espelho dá 7 anos de azar. Já um exemplo de misticismo é a oração que as pessoas fazem para uma divindade suprema pedindo auxílio.
Em resumo, místico é aquele que crê em uma Força Superior que dá origem a tudo o que existe no Universo. Não tem nada a ver com superstição.
Talvez até aqui você tenha se lembrado do sloka 3, do capítulo I, do Sutrasthana, do Ashtanga Hrdayam, que diz (em tradução livre):
Brahma lembra o conhecimento do Ayurveda, o transmite para Prajapati, que o transmite para os gêmeos Ashvins, que o transmitem para Sahasraksha, que o transmite para a humanidade.
Ou seja, segundo os próprios textos clássicos do Ayurveda, o conhecimento vem de Brahma, o Universo, a divindade suprema.
— Ah, Évelim, mas isso é mitologia.
Te respondo: não, não é. É cosmovisão. Vamos entender melhor?
O que é cosmovisão?
Cosmovisão é uma palavra que reúne o modo de ver o mundo de uma civilização. Isso envolve não só as crenças e valores, mas também hábitos, espiritualidade, ciência, medicina…
As tradições antigas, como a Civilização do Vale do Indo (anterior à Era Védica), Kemética (Egípcia), Assíria, Mesopotâmica, Maya, Inca, Asteca, Guarani, Tupi, e todas as que você possa imaginar, não faziam distinção entre medicina, astrologia, astronomia, agricultura, etc.
Todo esse conhecimento era visto de forma integrada e fazia parte do dia a dia das pessoas. Em resumo, a vida desses povos era sagrada simplesmente porque eles compreendiam que somos um reflexo da divindade. E a divindade reside na simplicidade, na unicidade das coisas, não no complexo e na multiplicidade.
Por essa razão, as pessoas cultuavam a divindade do milho, da medicina, da fertilidade, da chuva, e assim por diante, compreendendo essas forças não como deuses propriamente ditos, mas como aspectos de um Todo Sagrado, infinito e eterno.
Qualquer doença que se desenvolvesse em uma pessoa era sinal de que ela não estava em equilíbrio ou harmonia com os princípios deste Ser Supremo. Este é um raciocínio místico que perdura até hoje em inúmeras Escolas Iniciáticas.
A Era Védica e a (potencial) origem do Ayurveda
Atualmente, os praticantes e estudiosos do Ayurveda afirmam que a origem desta ciência se deu no Atharva Veda, o último dos quatro Vedas, obra que muitas pessoas atribuem aos arianos.
O nome da obra faz referência a Atharvan, considerado um sacerdote do fogo e um dos saptarishis, ou seja, um dos sete sábios que tiveram “a visão”. A visão, neste caso, seria a conexão com a Mente de Brahma — Consciência Cósmica —, trazendo o conhecimento para a humanidade.
Um adendo: qualquer semelhança com termos xamânicos não é mera coincidência. Abordarei as origens xamânicas do Ayurveda em outro artigo.
Pois bem, o próprio Atharva Veda traz encantamentos e rituais magísticos dedicados à cura. Existem encantamentos para curar febre, tosse, feridas e icterícia, por exemplo.
São mencionados rituais para restaurar a virilidade, para ter filhos homens, para fazer com que os cabelos cresçam, para que a colheita seja abundante, para que os animais produzam crias saudáveis, para que haja harmonia na família, dentre muitos outros.
Percebe como existe uma cosmovisão aqui? O mesmo livro traz rituais para a cura física, emocional e espiritual, para a abundância material e também para afastar energias malignas.
Não havia, naquela época, divisão entre ciência e “não ciência”. Foi somente com a ascensão dos brâmanes que o sistema de cura tradicional começou a ser marginalizado.
Não coincidentemente, foi quando as mulheres começaram a ser destituídas de sua posição de igualdade na sociedade — falaremos sobre o culto à Deusa nos povos Indo-Arianos em um próximo artigo.
O nascimento dos “clássicos” do Ayurveda
Dentre os chamados clássicos do Ayurveda, o texto mais antigo é o Charaka Samhita, situado aproximadamente no século II a.C.
Atreya Punarvasu, considerado um dos grandes sábios do Ayurveda, por sua vez, é situado no século VI a.C.
Na época de Atreya Punarvasu, ainda não havia uma sociedade organizada tal qual a concebemos hoje. As primeiras estruturas para uma monarquia estavam sendo construídas ao longo do século VI e V a.C.
Os clãs foram deixando de existir para dar lugar à propriedade privada e ao comércio de bens, enquanto o sistema social passou a se centrar na figura masculina e no acúmulo de riquezas.
O sistema de castas privilegiava os brâmanes e os kshatryias, que se tornaram os governantes. Através da arrecadação de impostos de um povo agricultor, baseado em clãs familiares, comerciantes, com sua própria cosmovisão, os dois primeiros enriqueceram e impuseram suas “verdades”.
Dentre essas crenças, estavam questões como a inferioridade da mulher na sociedade (vale lembrar que, na Era Védica, as mulheres gozavam de vários direitos, dentre eles, acesso ao conhecimento e prática da medicina) e a desacreditação da medicina tradicional — hoje chamada de folclórica, que era praticada pelos curandeiros ou shramans (xamãs).
É neste contexto que o Charaka Samhita é editado pela primeira vez, trazendo, junto consigo, o pensamento dominante da época.
O ser humano passa, então, a ser visto de uma maneira mais racional, deixando de lado — pelo menos abertamente — a visão místico-filosófica sobre a saúde, mantida até o Atharva Veda.
No entanto, mesmo diante da construção de um novo pensamento científico, os clássicos não abandonam de todo a visão integral do ser humano.
Basta lembrarmos da definição de vida, segundo os clássicos: a junção do corpo, mente, órgãos dos sentidos e Atma (a centelha divina). Portanto, mais uma vez, fica evidente que Ayurveda sem misticismo não existe.
A filosofia samkhya no Ayurveda
Outro ponto que é comumente visto em qualquer formação em Ayurveda é que este conhecimento tem por base inúmeras escolas filosóficas. Dentre as que mais se destacam, está a filosofia samkhya.
Samkhya é uma escola dualista, ou seja, que considera o universo como proveniente da interação de duas forças superiores: Purusha (Consciência Divina ou princípio masculino) e Prakrti (Natureza ou princípio feminino).
Prakrti é um princípio trino, composto por Sattva, Rajas e Tamas, os três mahagunas. Quando “perturbados”, esses três princípios geram a manifestação, ou seja, tudo o que existe no Universo.
Dessa manifestação, surgem os 23 tattvas, de onde se originam também os panchamahabhutas, responsáveis pela formação de toda e qualquer matéria. Isso significa eu, você, um grão de areia ou uma baleia.
Inclusive, os doshas são formados por panchamahabhutas. Ou seja, a base do diagnóstico e tratamento ayurvédicos é mística. Não há como negar.
Para concluir
Levando todo o exposto em consideração, negar o misticismo dentro do Ayurveda é negar as bases que deram origem a esse sistema de medicina e o que o mantêm mais atual do que nunca, afinal, a essência do Universo é sempre a mesma. Portanto, o mesmo tratamento aplicado há 3 mil anos continua completamente válido hoje.
Nossa dificuldade em compreender esse conhecimento que não separa razão e espiritualidade, macrocosmo e microcosmo, não pode servir de desculpa para negarmos as raízes ancestrais dele.
Pelo contrário, deveria nos levar a querer descobrir tais mistérios, desvendar aquilo que está nas entrelinhas, compreender o que a razão não vê, mas a intuição sabe.
Obrigada por me ler até aqui e nos vemos no próximo artigo.
Eve.