Uma das principais características da Medicina Ayurveda é o entendimento da fisiologia do corpo humano por meio de três entidades que conhecemos como doshas — vata, pitta e kapha.
Essas três entidades podem ser interpretadas de inúmeras formas. Em um nível materialista-científico, podemos compreender os doshas como conjuntos de processos fisiológicos interdependentes responsáveis por todo o funcionamento do nosso organismo.
Mas, ao nos aprofundarmos no estudo dos doshas, descobrimos que eles são muito mais do que isso. Por isso, hoje quero te apresentar uma visão diferenciada de vata dosha.
Ao longo deste artigo, você vai entender o que é vata dosha, qual a sua importância e o que ele representa tanto para nós quanto para todo o Universo.
Curiosa? Então continua comigo!
O que é vata dosha?
De acordo com o Ayurveda, vata dosha é uma das três entidades que governam a fisiologia dos corpos dos seres vivos, sendo responsável por todas as atividades relacionadas ao movimento.
Sendo assim, é ele quem controla os movimentos das nossas pernas e braços, o peristaltismo do nosso sistema digestório, o nosso abrir e fechar de olhos, entre tantos outros.
É também vata dosha que molda a forma do feto durante a gestação, que promove a expulsão do bebê durante o parto e que elimina a menstruação mensalmente.
Outros processos eliminatórios também estão sob controle de vata dosha, como é o caso da eliminação de fezes, urina, flatos, lágrimas, coriza, etc.
Além disso, vata dosha é responsável por dar início às atividades da mente. Mais especificamente, prana vayu, que é uma das cinco manifestações de vata dosha. Ou seja, sem ele, não conseguiríamos pensar, raciocinar ou desenvolver o nosso intelecto.
Qual a importância do dosha vata?
Vata dosha é tão importante que Acharya Sarngadhara diz que pitta, kapha e todos os dhatus são incapazes de se mover sem o auxílio de vayu (Sa.Pu.5:25).
E ele continua, afirmando que dentre os três doshas, vata é o mais poderoso, por ativar os demais e fazê-los trabalhar (Sa.Pu.5:26). Em outras palavras, sem vayu, nenhum ser vivo existiria.
No Charaka Samhita, vamos mais a fundo na importância do dosha vata. No capítulo 12 do Sutrasthana, desvendamos os méritos e deméritos dele. E no capítulo 28 do Chikitsa Sthana, adentramos o universo dos desequilíbrios de vata dosha e como tratá-los.
Não vou entrar aqui em detalhes de desequilíbrios e tratamentos, pois não é o objetivo. O que eu quero é te mostrar a importância do dosha vata e o quanto precisamos nos aprofundar no estudo desta entidade.
Vayu: o controlador de todo o Universo
No terceiro sloka do Capítulo 28 do Chikitsa Sthana, Acharya Charaka diz:
Vayu é o élan vital, vayu é a força, vayu é o sustentador dos corpos de todos os seres vivos, vayu é onipresente e vayu é reputado como o controlador de tudo no Universo.
Vayu é comparado a bala, isto é, a nossa força motriz, aquilo que nos anima, que nos faz seres viventes.
E, se recuperarmos o conceito de Ayurveda de Charaka (Ca.Su.1:42), vamos encontrar uma grande surpresa.
Acharya Charaka nos diz que Ayuh (vida) é a união de sharira (corpo), indriya (sentidos), sattva (mente) e Atma (Alma).
Ele compara esse termo a outras palavras, como dhari, que significa “aquele que dá suporte”.
Charaka também estabelece como sinônimo de Ayuh a palavra jivita, que significa animado, vivo. E ele também compara Ayuh à palavra nityaga, que significa movimento contínuo, fluxo.
O que é vata dosha senão movimento contínuo, fluxo? A própria palavra vayu assume o significado de vento em muitos contextos, especialmente no Ayurveda.
Em estado de equilíbrio, vayu permite que o ser viva por mais de 100 anos livre de doenças (Ca.Ci.28:4).
Charaka também nos alerta que nenhuma faculdade sensorial pode desfrutar de seus objetos sem a presença de vayu. Isso significa que só podemos ter contato com o mundo material através de vata dosha, isto é, de movimento.
Vayu: entre a existência e a destruição
Agora vamos entrar em um solo um tanto quanto desconhecido e polêmico na comunidade ayurvédica. Mas te peço mente e coração abertos para explorar a beleza desse conhecimento milenar e a profundidade dessa sabedoria ancestral.
No capítulo sobre méritos e deméritos de vata dosha (Ca.Su.12), encontramos uma das explicações mais lindas e profundas sobre vayu.
De acordo com o rishi Varyovida, vayu é a eterna causa do Universo, aquele que traz a existência e a destruição. Ele também é a causa da felicidade e do sofrimento.
Vata permeia todo o Universo, é sutil e onipresente. É responsável por todos os pensamentos e ações. Vayu também é Vishnu, o mantenedor do Universo.
Vayu é Yama
Yama é o deus da morte e da justiça. Yama corresponde ao planeta Saturno, na astrologia védica. Também corresponde ao número 2, em Ganitashastra (matemática e álgebra).
Yama pode significar, ainda, gêmeos, o que nos remete aos gêmeos Ashvins, que fizeram parte da linha de transmissão do Ayurveda para a humanidade. Além disso, Yama pode significar restringir, refrear.
Agora pare e pense comigo: o que acontece quando vata dosha é bloqueado? Ele não é capaz de levar à morte? E quando ele flui livremente, de forma equilibrada? Ele não mantém a vida?
Vayu é Prajapati
Se você se lembra da cosmogênese do Ayurveda, citada por Vagbhata no capítulo 1 do Ashtanga Hrdayam, vai lembrar que Brahma lembra o conhecimento do Ayurveda e o transmite a Prajapati, o Senhor das Criaturas, ou seja, daquilo que foi criado.
E para vislumbrarmos ainda mais a beleza disso, vamos entender a palavra Prajapati. Praja significa descendência, a humanidade. Pati, por sua vez, pode ser compreendido como marido ou esposa ou, ainda, como governante.
Nesse sentido, vata é nityanta, aquele que governa, regula, guia e controla. E mais: não é macho nem fêmea. É ambos.
Vayu é Vishvakarma
Varyovida também compara vayu a Vishvakarma, o Arquiteto do Universo. Ele é a onipotência divina personificada e um dos sete raios do Sol.
Vishvakarma é, ainda, prana, apana e samana, a tríade essencial de vata dosha em nosso organismo.
Vishva significa Universo, onipresença, a percepção do eu. Ele também é a personificação de vyana vayu e Shiva, o destruidor.
Vayu é Aditi
Finalmente, Varyovida nos brinda com a informação de que Vayu é Aditi, a Mãe Divina, que é fértil, abundante, ilimitada e piedosa. Ela é libertação, a Deusa dos Céus e da Terra, a perfeição e o poder criativo que a tudo dá origem.
Aditi é a mãe dos deuses, a causa de toda a Criação. Ela é o grande útero cósmico, que contém todo o Universo.
Aditi é o passado, o presente e o futuro. Ela é Vac, a palavra divina em movimento, que a tudo cria e recria.
Como diz o Rg Veda (Rg Veda, 1.89.10),
“Aditi é o céu, Aditi é a atmosfera, Aditi é a mãe, Aditi é o pai, Aditi é o filho; todos os deuses são Aditi, as cinco raças; Aditi é o que nasce, Aditi é o que está para nascer”.
Para concluir a nossa conversa
Eu sei que essa visão sobre vayu pode parecer muito além da sua compreensão. Também pode parecer nada prática, já que não te fala sobre doenças e como curá-las.
Mas compreender que vayu é muito mais do que um dosha, afinal, é a razão para a nossa existência enquanto seres vivos, nos traz uma dimensão muito maior sobre a responsabilidade que temos ao tratar uma outra pessoa.
Quando identificamos que uma pessoa tem um desequilíbrio de vata dosha, podemos abordar isso de duas formas. Uma pragmática, receitando medicamentos, mudanças de hábitos e de alimentação. Outra integrativa, assumindo que a própria existência daquela pessoa precisa retornar à sua essência.
E isso envolve compreender o contexto em que a pessoa vive, seus anseios e dificuldades, sua relação consigo mesma e com os outros, os seus traumas, as suas alegrias, o seu significado único de viver.
Também envolve compreender o quanto estamos afastados da nossa essência enquanto seres humanos, submetidos a uma estrutura capitalista e patriarcal fundamentada no corpo-máquina, cuja máxima produtividade é o que determina o seu valor na sociedade.
Embora o Ayurveda moderno esteja se adaptando cada vez mais a essa realidade que nos oprime e assola, a verdade é que a essência desse conhecimento ancestral é muito mais profunda e demonstra que, para estarmos saudáveis, precisamos respeitar o nosso biorritmo, que não é o da máquinas, tampouco o do capital, mas sim o da Natureza e de todo o Cosmos.
Um forte abraço e a gente se vê no próximo artigo.
Eve.