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Quando falamos em medicina, é comum associarmos essa ideia ao conceito moderno de fazer “ciência”. E é dessa ideia equivocada que surge a pergunta que abre este artigo: Ayurveda é religião?

Em outras palavras, quando pensamos em medicina moderna, logo vem às nossas mentes uma separação intransponível entre o que é ciência e o que é espiritualidade; consideramos cada parte do corpo como se ela atuasse de forma isolada; queremos acabar com os sintomas das doenças sem descobrirmos a causa; e por aí vai.

Mas as civilizações antigas não pensavam dessa maneira. Elas tinham conhecimentos profundos sobre a manifestação do Universo e tudo o que nele existe, até mesmo nós, seres humanos.

Entendiam que nossos corpos são como um reflexo do que ocorre no macrocosmo. E, a partir desse entendimento, sabiam que era impossível dissociar o funcionamento do corpo humano das Leis que regem o Universo.

E quem rege essas Leis? Seguramente não são os seres humanos. Mas isso não significa que Ayurveda é religião. Por isso, quero te convidar para uma reflexão um pouco mais profunda sobre o assunto. Topa?

O que é religião, afinal?

Para entendermos se Ayurveda é religião ou não, o primeiro passo é compreender o que é religião de fato.

De acordo com o Dicionário de Filosofia de Stanford, a palavra religião deriva do latim “religio”, que significa conscienciosidade, devoção, obrigação.

Como as pessoas adoravam as inúmeras manifestações da divindade de diferentes formas, esse conceito passou a representar a maneira como determinado grupo social adorava determinada divindade.

O conceito que temos hoje de religião começou a se desenvolver apenas em meados de 1500 EC e se consolidou tão somente em meados de 1900, com uma importante influência da igreja católica, que acabou dominando boa parte do globo terrestre.

Mas repito, os povos antigos não tinham esse tipo de delimitação. Por isso, quando estudamos culturas como a do Vale do Indo, a Egípcia, a Andina, a Mesopotâmica, etc, não falamos em religião, mas sim em cosmovisão.

Cosmovisão e cosmovivência

Cosmovisão é a forma como uma sociedade ou um grupo social observa e percebe o mundo. Ela é influenciada pela cultura local e também se desenvolve em um território limitado.

Já a cosmovivência é como as pessoas desse grupo vivenciam essa cosmovisão, isto é, como elas interagem com esse pano de fundo que as orienta.

Quando a cosmovisão e cosmovivência estão em harmonia, existe coerência interna para aquele povo.

Agora, pare e pense comigo. Como a sociedade que desenvolveu o Ayurveda vivia? Qual era a sua cultura? Em quê essas pessoas acreditavam?

São essas perguntas que precisamos responder para tentar entender se Ayurveda é uma religião ou não.

A origem do Ayurveda

É consenso entre a maioria dos estudiosos que o Ayurveda enquanto registro escrito teve seu início nos Vedas, mais especificamente no Atharva Veda, que data aproximadamente de 900 AEC. 

Contudo, sabemos que a civilização harappiana esteve presente no Vale do Indo de 3300 a 1400 AEC e foi se mesclando com a civilização indo-ariana até meados de 1600 AEC.

E o que sabemos a respeito das civilizações harappiana e védica?

A civilização harappiana tinha sua economia baseada na agricultura, com grandes celeiros e domesticação de animais. Metalurgia, artesanato, fiação e produção de armas também foram confirmados pelas escavações arqueológicas.

No campo da espiritualidade, inúmeros indícios de uma civilização que cultuava uma divindade feminina, a fertilidade da terra e os elementos que constituem toda a formação do Universo, os panchamahabhutas.

A civilização védica inicialmente mantém o culto ao feminino, destacando a importância de personalidades femininas na composição de hinos, mantras e conhecimento filosófico.

O próprio Atharva Veda traz rituais de cura para dezenas de enfermidades, trata da vida doméstica das pessoas, como o cuidado com animais, e ainda discute temas de elevação espiritual, o que demonstra claramente que a cosmovisão desse povo era integradora. Em outras palavras, não dissociava matéria médica de espiritualidade.

Charaka samhita: entre ciência e misticismo

Embora muitas pessoas insistam em afirmar que não existe misticismo no Ayurveda, basta folhearmos o Charaka Samhita, o livro mais importante do Ayurveda a que temos acesso hoje, para que essa teoria caia por terra.

O texto milenar discorre sobre a origem de Atma (que alguns traduzem como Alma) e a formação da matéria a partir de elementos sutis, chamados panchamahabhutas.

Define Prakrti como a Natureza Primordial, aquela que permite a manifestação material e que é a contraparte Purusha, uma referência direta ao princípio de dualidade que tanto estudamos nas tradições místicas.

Também faz afirmações que são amplamente conhecidas em tradições esotéricas, como o reflexo do macrocosmo no microcosmo humano e vice-versa, ressaltando que a observação de um pode orientar o entendimento do outro.

Em outras palavras, ao observar o macrocosmo, podemos desvendar o corpo humano, suas funções, atividades, necessidades e a sua própria evolução.

O livro que é aclamado por apresentar a base da ciência ayurvédica também nos fala sobre a transmigração de Atman (alma), um conceito apresentado e defendido também por Pitágoras, assim como diversos povos nativos das Américas.

E o que isso nos diz sobre Ayurveda ser ou não ser uma religião? Ayurveda não é religião, mas é um ensinamento também espiritual.

Moksha: o objetivo do Ayurveda

Logo no início do Ashtanga Hrdayam, um dos livros mais importantes e difundidos do Ayurveda, descobrimos que o objetivo deste conhecimento é dharma, artha, kama e moksha.

Dharma é a retidão de propósito, a conduta correta ao longo da vida. Artha é a riqueza, a abundância, a prosperidade.

Kama, por sua vez, é o prazer e a felicidade, o desfrute da vida. E moksha, a libertação de todos os apegos da vida mundana, de toda a matéria que nos cerca.

Logo, o objetivo final do Ayurveda não é ter um corpo sarado, não é perder 10 quilos em um detox, não é tomar shots de cúrcuma e limão pela manhã.

O objetivo final do Ayurveda é compreender que o corpo (sharira) se vai. E deixá-lo ir sem sofrimento, sem culpa, sem vergonha, respeitando seus processos e compreendendo que o caminho é a transcendência da matéria, porque Atma e matéria evoluem juntos.

E, embora isso não seja uma religião, porque religiões são carregadas de dogmas, é sim um caminho espiritual.

Um caminho que te conduz a uma vida mais longa, próspera e saudável para que você leve deste mundo todos os aprendizados possíveis para a sua próxima vida.

Se você chegou até aqui, obrigada por me ler.

Espero que este artigo tenha ampliado a sua visão sobre Ayurveda, religião, cosmovisão e cosmovivência.

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Um grande abraço e a gente se vê no próximo artigo.

Eve.

Évelim Wroblewski

Évelim Wroblewski é terapeuta Ayurveda especializada em Ginecologia Ayurveda e Ginecologia Natural. Possui Formação em Medicina e Herbolaria Tradicional Andina e Formação em Partería Ancestral Andina. Cursa Formação em Kaya Chikitsa (Medicina Interna pelo Ayurveda), Especialização em Manas Vijñana (Psicologia e Psiquiatria pelo Ayurveda) e Especialização em Medicina Tradicional e Cosmovisão Indoamericana.

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