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Quando nos deparamos com os textos clássicos do Ayurveda, é comum ficarmos um tanto quanto confusas sobre a forma como o conhecimento é disposto.

Nosso primeiro impulso é tentar colocar esse conhecimento de uma forma linear, aprendendo primeiramente tudo sobre os doshas, depois tudo sobre as doenças, então tudo sobre os tratamentos.

E de fato, é o que todas as escolas de Ayurveda que conheço tentam fazer.

O resultado é que, muitas vezes, parece que ficamos sem recursos para compreender o que está sendo dito. Então, começamos a preencher lacunas com comparações com a medicina moderna ou com o pensamento ocidental.

E assim, vamos contribuindo para uma perda significativa do real sentido do conhecimento que estamos nos propondo a estudar — e a praticar.

Isso acontece porque o Ayurveda, assim como outros conhecimentos milenares, foi concebido por meio de um pensamento circular. E é sobre isso que vamos falar neste artigo. Continua comigo?

O que é um pensamento circular?

Para aquele que nasce, a morte é certa, e, após a morte, ele voltará a nascer.

Bhagavad-Gita 2:27

O pensamento circular deriva do entendimento dos povos ancestrais sobre a ciclicidade da Natureza.

Observando o movimento dos astros, o passar das estações, o comportamento dos animais e das plantas, o ser humano compreendeu que a vida se dava de forma cíclica. Isto é, a cada determinado período de tempo, os mesmos eventos se repetiam.

Uma árvore nasce, cresce, dá flores, gera frutos. Estes, por sua vez, geram sementes, que darão origem a novas árvores. Em determinado momento, essa árvore primordial também virá a morrer. O mesmo acontece no reino animal: o animal nasce, cresce, gera sua prole, envelhece e morre.

As estações se seguem em uma eterna dança, comandada pelos movimentos do Sol e a rotação da Terra. As marés se tornam ora altas, ora baixas, comandadas pela dança da Lua e da rotação da Terra.

Essa observação da ciclicidade da vida foi transferida para a forma como as culturas antigas, como Egípcia, Indiana e Chinesa, expressavam sua sabedoria.

É por essa razão que vemos a representação da vida expressa na Roda de Samsara. Também é por isso que textos sagrados, como as Upanishads, falam dos ciclos cósmicos, chamados de yugas, os quais têm começo e fim, um sempre iniciando com a destruição do outro.

A simbologia do círculo

O círculo é um símbolo sagrado em diversas culturas, sendo a representação do Universo, do Sol, da eternidade, do corpo e do feminino.

Ele é a manifestação material que se expande a partir do ponto (centro, masculino), vibrando em todas as direções e dando vida a tudo o que é matéria orgânica.

De acordo com culturas ancestrais, todos os corpos dotados de vida têm suas expressões baseadas na circularidade. A célula, a molécula e o átomo, por exemplo, possuem expressões circulares.

A Terra, assim como todos os demais astros, também possuem expressões circulares. Logo, todo o Cosmos é uma manifestação material proporcionada pela união do ponto e do círculo — masculino e feminino.

Pensamento linear x pensamento circular

O pensamento linear, tão presente em nossas vidas, foi concebido pela Tradição Judaico-Cristã.

Para essa Tradição, a existência do ser humano se inicia com a expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden e deve terminar no Julgamento Final. Portanto, existe um início, um meio e um fim, sem recomeços.

Por ter sido um pensamento dominante no mundo inteiro, em especial, na Europa, durante centenas de anos, essa ideia se consolidou em muitas culturas.

Também se infiltrou na ciência, que tratou de difundir essa ideia de forma ainda mais arraigada e dogmática. Algo que já vem sendo questionado pela física quântica e outros estudos similares.

Contudo, os povos originários não compartilham desta visão. Eles acreditam na renovação constante da Natureza, o que podemos ver também na Tradição Védica, com a trimurti Brahma – Vishnu – Shiva.

Criação, manutenção e destruição se revezam continuamente pela eternidade, sendo causadoras e destruidoras de todas as coisas a cada era ou yuga.

É por isso que Krishna diz a Arjuna que ele não deve temer a batalha, pois “para aquele que nasce, a morte é certa, e, após a morte, ele voltará a nascer”. Ou seja, cada ser cumpre seu papel, morre e volta a nascer, sob outra forma. Isso é um pensamento circular.

— Mas, Évelim, o que isso tem a ver com Ayurveda?

É o que vou te mostrar na sequência =)

Ayurveda e o pensamento circular

Se você já abriu um dos textos clássicos do Ayurveda, já deve ter tido a sensação de que eles começam com conceitos bem rasos e vão se repetindo ao longo dos capítulos, sempre com um pouco mais de profundidade, apresentando novas ideias que vão conformando a totalidade do pensamento ayurvédico.

A grande questão é que essa dinâmica não é exatamente um círculo, mas sim uma espiral. Cada vez que você finaliza o primeiro círculo, não continua exatamente de onde começou, mas sim de um ponto de partida um pouquinho mais elevado.

Para ficar mais claro, lembre de quando você nunca tinha ouvido falar de Ayurveda. Essa palavra sequer existia no seu vocabulário.

Quando você ouviu falar a primeira vez, já aumentou um pouquinho seu conhecimento. Depois, aprendeu sobre os doshas. Elevou um tiquinho mais sua compreensão. Depois, vieram os dhatus e malas. E assim sucessivamente.

A impressão inicial que nós temos é de que esse é um aprendizado linear. E porque nossa cultura tem esse pensamento linear, buscamos moldar o Ayurveda a esse tipo de modelo.

É por essa razão que algumas pessoas defendem que o conhecimento do Ayurveda é disposto em camadas. E, de certa forma, está correto. Mas não é um raciocínio completo.

Ayurveda: uma espiral de conhecimento

Ao estudar os textos clássicos do Ayurveda, você pode perceber que os mesmos conceitos são retomados uma e outra vez, sempre acrescentando uma nova visão sobre eles. Ou seja, você vai construindo uma espiral de conhecimento.

E qual é a grande diferença disso para o estudo do Ayurveda?

Se mantivermos a ideia de que o Ayurveda é um conhecimento linear, estaremos sempre esperando chegar ao fim. Isto é, ao momento em que teremos aprendido absolutamente tudo e não haverá nada mais a ser explorado.

Mas a verdade é completamente outra. Quanto mais passamos pelos mesmos conceitos, mais nuances podemos perceber. E mais aprendizado podemos obter.

É como um relacionamento de longo prazo. Quanto mais você vê aquela pessoa todos os dias, mais coisas descobre sobre ela. Isso não se esgota nunca, desde que você tenha abertura para aprender continuamente.

Mas a importância da circularidade do pensamento ayurvédico não se esgota aí.

O pensamento circular é um pensamento feminino

Com certeza você já ouviu falar que os homens só conseguem fazer uma coisa de cada vez, enquanto as mulheres conseguem fazer várias coisas ao mesmo tempo. Isso não é à toa.

O pensamento feminino é um pensamento circular, que vê o todo, que percebe o seu entorno. O pensamento circular é inclusivo, considera não só o indivíduo como o seu ambiente e as pessoas que o rodeiam.

Passeie por algumas páginas dos clássicos ayurvédicos e você vai perceber como os textos trazem orientações sobre o cuidado com a Natureza, a forma de tratar as pessoas, a importância da espiritualidade para o equilíbrio da saúde. Eles falam sobre amizade, como tratar seus vizinhos e até seus inimigos.

— Ah, então você está dizendo que os textos clássicos do Ayurveda foram escritos por mulheres?

Alguns deles, com certeza. Não tenho dúvida alguma disso. Mas é importante compreendermos que os princípios masculino e feminino não estão ligados a gênero.

Todo ser humano possui esses princípios. E vemos esta explicação nos mesmos textos ayurvédicos, que nos falam sobre Purusha (consciência – masculino) e Prakrti (matéria – feminino).

Purusha é energia potencial, mas é desprovido de movimento. Prakrti, por sua vez, é o seu oposto complementar: moldável, mutável, dinâmica.

Purusha é como uma ideia na sua mente. Se você não colocá-la em prática, ela não se move, não se transforma, não ganha vida. Essa ideia só se transforma em ação através de Prakrti.

Se considerarmos que a linguagem é uma manifestação material, assim como a escrita, não podemos negar que elas são o próprio princípio feminino manifestado.

Basta lembrarmos que a divindade que personifica o conhecimento é Sarasvati. E que ela também é chamada de Trayī, em referência aos três Vedas. É Ela quem presenteia a humanidade com este conhecimento.

Sarasvati é a consorte de Brahma, ou seja, sua polaridade feminina. Ela é aquela que flui com o som, dando origem a tudo o que existe, existiu e existirá. Inclusive o Ayurveda.

Espero que este artigo tenha adicionado um pontinho a mais na sua espiral de conhecimento ayurvédico e que ele tenha te inspirado tanto quanto me inspira a seguir neste caminho.

Um grande abraço e a gente se vê no próximo artigo.

Eve.

Évelim Wroblewski

Évelim Wroblewski é terapeuta Ayurveda especializada em Ginecologia Ayurveda e Ginecologia Natural. Possui Formação em Medicina e Herbolaria Tradicional Andina e Formação em Partería Ancestral Andina. Cursa Formação em Kaya Chikitsa (Medicina Interna pelo Ayurveda), Especialização em Manas Vijñana (Psicologia e Psiquiatria pelo Ayurveda) e Especialização em Medicina Tradicional e Cosmovisão Indoamericana.

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