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Se você perguntar a qualquer profissional ou estudante de Ayurveda, a resposta será categórica: todos os textos clássicos do Ayurveda foram escritos por homens.

A justificativa até que é plausível: em uma sociedade patriarcal, as mulheres se casavam cedo, geralmente antes dos 16 anos, e por isso não podiam seguir os estudos para se tornarem vaidyas.

Mas e se eu te dissesse que a história não é bem assim?

Basta nos debruçarmos um pouquinho que seja sobre os textos sagrados para encontrarmos nomes como Gargi, Lopamudra, Indrani, Gosha, Romasha, Vishvavara Atreyi, Surya Savitri, entre tantas outras mulheres incríveis.

Elas foram filósofas, escritoras, rainhas, astrônomas, guerreiras, sacerdotisas, médicas, rishikas.

Sua astúcia desafiou reis e pôs à prova a profundidade do conhecimento de outros sábios.

Sua sabedoria inspirou não só outras mulheres, mas reis, rainhas e toda uma civilização.

Elas foram homenageadas como a própria fonte dos purusharthas e a verdadeira conexão com a divindade.

E hoje, eu quero te falar sobre uma dessas mulheres. Mas antes, precisamos dar um passo atrás e entender o contexto histórico da Índia há 5 mil anos.

Da civilização harappiana aos Vedas

A maioria das pessoas pensa em Índia e toda a riqueza cultural que se desenvolveu nessa região a partir do registro escrito dos Vedas.

Pois bem, as teorias mais aceitas situam os Vedas entre 2000 e 1500 AEC. Outras, mais ousadas, afirmam que essas escrituras sagradas datam de aproximadamente 6000 AEC.

No entanto, até o momento, não se pôde comprovar que tais escrituras sejam tão antigas. Até porque, a tradição predominante na sociedade pré-védica e védica era a de guru-shishya parampara, isto é, oral.

Mas a arqueologia já provou que a sociedade do Vale do Indo, chamada de Harappa, já tinha uma estrutura bem desenvolvida em 3300 AEC.

Essa civilização, que se estendeu não só pelo Vale do Indo, mas pelas terras altas da Ásia Ocidental, Mesopotâmia e oeste do Irã, foi uma das mais ricas e complexas da época.

E para surpresa de muitos, era uma sociedade centrada no feminino.

O culto ao feminino em Harappa

As descobertas no sítio arqueológico de Harappa mostram estatuetas de divindades femininas sendo carregadas por touros, animais comumente associados a Shiva, uma divindade masculina.

Na civilização de Harappa, a deusa também foi retratada dominando dois tigres. Se você conhece um pouco da cultura indiana, sabe que a Deusa Durga, Mãe do Universo, é comumente retratada sentada sobre um tigre.

Outros objetos associados ao feminino também foram encontrados, como um selo no qual se apresenta a figura de uma deusa de cujo ventre nasce uma planta.

Essa representação nos revela que a cultura de Harappa venerava a Natureza e a conexão do feminino com esse poder criador que sustenta a vida.

Tantas representações femininas também nos indicam o papel central da mulher na sociedade, que dividia seus afazeres com os demais membros da comunidade, onde cada pessoa cumpria suas tarefas para o bem de todos.

E o início da Era Védica manteve esse culto ao feminino.

O feminino na Era Védica

No período do Rig Veda, tanto meninas quanto meninos tinham acesso à educação.

Eles passavam por duas etapas educacionais, chamadas de upanayana e brahmacharya.

Upanayana consistia em um ritual de iniciação aos estudos védicos, onde a criança era entregue ao professor para começar sua educação formal e aprender os mantras.

Já brahmacharya, correspondia a um segundo nível de educação, onde a pessoa dava início à sua vida espiritual.

Quando se trata das mulheres, os próprios textos védicos mencionam duas categorias de mulheres estudiosas: as brahmavadinis e as sadyodvahas.

As brahmavadinis abriam mão do casamento para estudar e disseminar os Vedas. Muitas delas se tornaram rishikas, ou seja, mulheres sábias. Gargi Vachaknavi e Lopamudra são dois exemplos de rishikas cujos nomes foram eternizados nos Vedas e Upanishads.

As sadyodvahas, por sua vez, interrompiam seus estudos quando se casavam. Porém, isso não significava que elas se dedicariam apenas ao lar. Muitas delas trabalhavam com tecelagem e outras atividades, mantendo uma vida economicamente ativa.

Mesmo após o casamento, tanto homem quanto mulher eram responsáveis pelos ritos sacrificiais, o que demonstra que ambos exerciam um papel de igualdade perante a sociedade.

Vós sois a natureza intrínseca do som e extraordinariamente pura
como o Rig Veda, o Yajur Veda e o Sama Veda com o modo especial
de pronunciação das canções em louvor ao Divino; vós sois o alicerce.
Vós sois os três Vedas e a Imperatriz Suprema. A criação e proteção
do universo é o trabalho que vós manifestais. Vós sois a Destruidora
do Medo e Angústia em todo o universo perceptível.

Lalita Trishati

Além disso, as escrituras védicas nos dão outras pistas de que as mulheres tinham os mesmos direitos que os homens, ao mencionarem professoras solteiras (upadhyayas) e professoras casadas (upadhyayanis).

Inclusive, estudos indicam que as mulheres eram homenageadas como a própria fonte dos purusharthas — dharma, artha, kama e moksha.

Tamanha veneração pelas mulheres as colocava em posição de destaque. Então o que aconteceu para que elas fossem sumariamente apagadas dessa história?

O declínio dos direitos das mulheres

Na fase budista e jainista, as mulheres ainda gozavam de inúmeros direitos, como educação, abraçar uma profissão, participar ativamente da sociedade…

Mas um direito fundamental lhes foi retirado: o direito à participação política.

Uma vez impedidas de legislar sobre seus próprios direitos, elas ficaram sujeitas às leis dos homens, o que deu passo à sua completa anulação enquanto cidadãs no período dos Dharmashastras, através do Manusmrti.

A partir do Manusmriti (600 AEC a 200 EC ), as mulheres deixaram de ter direito à educação e o casamento infantil passou a ser praticado.

O objetivo era mantê-las sob controle, ao mesmo tempo em que se garantia poderosas alianças entre famílias.

Sua única função na sociedade passou a ser a maternidade e os afazeres domésticos, destituindo-as da possibilidade de governar suas próprias vidas e escolher seu próprio caminho.

O Manusmrti classificou as mulheres como impuras e cidadãs de segunda classe. Determinou que nada deveria ser feito por elas, fosse na infância, juventude ou velhice.

Essas leis também diziam que as mulheres seriam sujeitas ao pai na infância e ao marido na juventude. E, uma vez que este estivesse morto, elas estariam sujeitas aos filhos, nunca podendo se tornar independentes.

Um Kandala, um porco da aldeia, um galo, um cachorro, uma mulher menstruada e um eunuco não devem olhar para os Brahmanas enquanto eles comem.

Manusmrti

Elas também proibiam mulheres menstruadas de participar de atividades em comunidade, bem como de olhar para os brâmanes. Estes, por sua vez, jamais poderiam ter contato com elas, por serem consideradas sujas.

E mais do isso: as leis de Manu diziam que os homens que se aproximassem de uma mulher menstruada perderiam sua energia e vitalidade, vindo a morrer. 

Por isso, os homens deveriam evitar comer junto a suas esposas e até mesmo olhá-las enquanto elas estivessem no período menstrual.

As leis de Manu diziam, ainda, que as mulheres eram seres malévolos, e por isso, deveriam ser controladas.

E foi neste contexto que os textos do Ayurveda começaram a ser escritos e difundidos. Portanto, classificavam as mulheres como seres menos importantes, eliminando por completo sua participação no desenvolvimento do conhecimento ayurvédico.

Algo que, apesar as revisões de pares ao longo dos milênios, jamais foi revisto ou retratado até hoje.

Rusā: a vaidya ocultada pela história

É fato que, apesar de quase 3000 anos de tentativas de aniquilar a participação feminina na história da humanidade, ainda temos vestígios de mulheres brilhantes.

Não à toa, ainda ouvimos falar de Sulabha Maitreyi, Gargi Vachaknavi, Lopamudra, Ghosha, Visvavara, Vadava Prachiteyi, Sikata Nivavari…

Fragmento do Livro de Rusā traduzido para o árabe

Porém, muitas dessas mulheres tiveram seus nomes ocultados da história não só pelos códigos de Manu, mas pela perpetuação do medo profundo que uma sociedade patriarcal tem de mulheres independentes e empoderadas.

Uma dessas mulheres se chamava Rusā — ou, pelo menos, foi como ela ficou eternizada no al-Fihrist (Catálogo de Bagdá), do livreiro al-Nadim.

Seu tratado de Ginecologia Ayurveda, que foi traduzido para o árabe entre os séculos VIII e IX, juntamente com outros textos clássicos do Ayurveda, como Charaka Samhita e Sushruta Samhita, provavelmente tenha se perdido para sempre.

Fragmento do Livro de Rusā traduzido para o árabe

Mas na obra Firdaus al-ḥikma, ou Paraíso da Sabedoria, do persa Ali ibn Sahl Rabban at-Ṭabari, ainda podemos vislumbrar pequenos fragmentos de sua inteligência e sabedoria.

E podemos ter a certeza de que as mulheres participaram sim da construção desse conhecimento que chegou até nós como sendo domínio de homens.

Também podemos ter uma pequena ideia de quantas outras mulheres, vaidyas, curandeiras, parteiras, sábias, tiveram suas vozes caladas e seu conhecimento apagado a fim de transmitir uma ideia que se perpetua até os dias atuais: de que somos menos capazes.

Mas podemos, também, ter esperança de um dia conseguir recuperar relíquias como essa, que contam a nossa verdadeira história e a nossa verdadeira trajetória através dos tempos.

Que sejamos Luz na escuridão, mesmo quando todas as lanternas estão apagadas.

Com amor,

Eve.

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Meu mais profundo agradecimento ao Alexandre Vieira, que me colocou frente a frente com o desafio de encontrar a Rusā, e ao Oliver Kahl, que me disponibilizou sua pesquisa sobre o Firdaus al-ḥikma e nos proporcionou esse vislumbre de uma história que poderia ter sido esquecida para sempre.

Évelim Wroblewski

Évelim Wroblewski é terapeuta ayurveda especializada em ginecologia ayurveda (striroga) pelo Instituto Adhipati e Sankarakripa Arogya Nikethanam, terapeuta da ginecologia natural pela escola Curandeiras de Si, e possui Formação em Medicina e Herbolaria Tradicional Andina pelo Instituto de Arte, Cultura, Ciência e Tecnologia Indígena de Santiago em parceria com a Escola de Medicina Andina.

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