Muitas pessoas se apegam aos aspectos do Ayurveda que o aproximam da medicina moderna. Comparam órgãos, funções e disfunções na tentativa de provar a validade deste conhecimento milenar nos dias atuais.
Esse movimento é natural e perfeitamente compreensível, já que vivemos em uma sociedade que prega que a ciência moderna é a única verdade a ser considerada.
Com medo de sermos criticadas, repreendidas, envergonhadas, desdenhadas, sequer consideramos a simples possibilidade de que não exista uma, mas sim muitas verdades.
Essas muitas verdades podem ser compreendidas por um termo que me encanta: cosmovisão.
Cosmovisão é a forma pela qual um povo percebe a sua realidade, a sua maneira própria de observar e compreender o mundo à sua volta.
Essa perspectiva é moldada pela cultura predominante em determinado território em determinada época, influenciando o que chamamos de cosmovivência, que é o modo de viver daquele povo.
Sem compreendermos isso, estamos fadadas a uma leitura superficial do que é o Ayurveda, buscando validar esse conhecimento ancestral a partir de perspectivas que nem sempre concordam com a sua cosmovisão. E assim, perdemos a oportunidade de vislumbrar a profundidade desta sabedoria.
Foi pensando nisso que hoje quis trazer um tema praticamente desconhecido dos praticantes ocidentais de Ayurveda: Loka Purusha Samya Siddhanta.
Continua comigo?
O que é Loka Purusha Samya Siddhanta?
Imagine uma grande onda no mar. Enquanto ela avança rumo à praia, milhares de minúsculas gotículas se desprendem da grande massa de água. E, nem que seja por apenas alguns segundos, elas têm plena consciência da sua individualidade. Mas elas não deixam de fazer parte da onda.
Agora, imagine que tudo, absolutamente tudo no Universo, é uma pequena gotícula no Oceano da Criação. Eu, você, uma folha de grama, uma estrela, um cometa, um vagalume, um planeta.
Assim como a gota de água do mar carrega consigo todas as propriedades da onda, nós também carregamos conosco todas as características intrínsecas ao Universo.
Somos um microcosmos dentro do macrocosmos. É isso o que diz Loka Purusha Samya Siddhanta. Nesse sentido, todas as características físicas, fisiológicas e comportamentais do Universo se refletem em nossos corpos.
Loka Purusha Samya Siddhanta nos textos clássicos do Ayurveda
Profundo conhecedor da anatomia e fisiologia humanas, Acharya Sushruta é quem nos alerta sobre como as três grandes forças da Natureza agem dentro de nós.
Ele diz que o equilíbrio do Universo é mantido pelas atividades de Surya, Chandra e Anila — Sol, Lua e Vento. Essas três forças estão refletidas no organismo de todos os seres viventes em forma de vata (ar) , pitta (calor) e kapha (frio), isto é, os doshas.
No capítulo 12 do Sutrasthana do Charaka Samhita, descobrimos quais são as funções do “vata fora do corpo”, bem como as consequências do seu desequilíbrio: terremotos, tempestades, incêndios, mudança no curso dos rios, perturbações nas estações, epidemias… (Se você vive no planeta Terra, já deve saber aonde quero chegar).
No mesmo capítulo, o sábio Marici nos diz que agni, representado no corpo por pitta, é como o fogo que arde no mundo. Kapya, por sua vez, compara kapha a Soma, o deus da Lua.
Sushruta também nos mostra que assim como os rios correm para o oceano, os mutravaha shrotas (canais de circulação de urina) correm rumo à bexiga. (Su. Ni. 3:21).
Assim como o planeta possui inúmeras fontes de água percorrendo seu corpo, as árvores possuem canais pelos quais corre a sua seiva e nós temos veias e artérias pelas quais corre o nosso sangue.
No capítulo sobre as doenças de kushta (pele), Charaka também faz comparações entre a aparência dos sinais e sintomas e os elementos da Natureza, ensinando ao estudante como reconhecer cada patologia não por definições teóricas e palavras difíceis, mas pela observação daquilo que está ao seu alcance.
Como você pode ver, os samhitas estão permeados de comparativos entre o funcionamento do corpo humano e fenômenos que vemos no mundo “fora nós”.
E por que eu disse “fora de nós”, entre aspas? Porque na realidade, ele não está fora. Nós somos parte deste Universo. E por esse motivo funcionamos da mesma maneira que ele — ou Ela, já que esse universo é Prakrti, o Princípio Feminino Manifesto.
Qual a importância do Loka Purusha Samya Siddhanta?
Eu sei que a maioria das pessoas tenta ver o Ayurveda apenas por um viés racional. E tudo bem, eu também uso essa mentalidade para diagnosticar desequilíbrios e tratar minhas interagentes. Mas ele é muito mais do que isso.
No início do capítulo 5 do Sharira Sthana do Charaka Samhita, Punarvasu Atreya diz:
“Um indivíduo é um epítome do Universo, pois todos os fenômenos materiais e espirituais que ocorrem no Universo estão presentes no indivíduo e tudo aquilo presente no indivíduo também está presente no Universo.”
E ele continua, mais adiante:
“Aquele que vê o Universo em seu próprio ser, e o seu próprio ser no Universo, é possuidor do conhecimento da verdade.”
O conhecimento da verdade é Satyabuddhi, a transcendência do ego e das questões mundanas. É moksha, a libertação do ciclo de morte e nascimento.
Até mesmo uma pessoa com uma doença terminal pode chegar a esse entendimento e compreender que ela é muito mais do que um aglomerado de células e funções biológicas, transcendendo o medo da morte física pela constatação de que ela é, em essência, esse Universo, que é infinito, eterno e indestrutível.
Eu, você e toda pessoa que ainda tem qualquer forma de apego, seja por coisas, pessoas, situações, pensamentos ou emoções podemos vislumbrar a transitoriedade da vida na Natureza, nas estações do ano, no passar dos dias, e assim focar naquilo que realmente importa: o momento presente.
Podemos agradecer a dádiva de estarmos convivendo neste espaço-tempo cientes de que tudo isto é apenas um milissegundo na existência deste Universo, que é imortal.
E podemos descansar na certeza de que nada é para sempre, mas em essência, tudo é para sempre.
Com amor,
Eve.
Um pós-post para os mais céticos
Se você terminou de ler meu post e ainda assim continuou cético em relação ao Loka Purusha Samya Siddhanta, vou te dar um outro panorama da importância desse conhecimento.
No atual cenário geopolítico mundial, muitos especialistas afirmam que estamos mais próximos de uma terceira guerra mundial do que jamais estivemos desde a Guerra Fria.
Basta visualizarmos a situação desumana em Gaza para compreendermos que nem é necessário um grande poderio militar para dizimar países inteiros.
Agora, imagine um cenário onde há falta de água, comida, abrigo e medicamentos. Hospitais sendo bombardeados, toda a tecnologia da medicina moderna virando escombros.
Médicos modernos que não sabem diferenciar sarampo de rubéola sem um exame de sangue — sim, isso é mais comum do que você possa imaginar.
O que você faria em um cenário destes?
Perceba que não estou falando de nada fora da nossa realidade. Os palestinos, sudaneses, etíopes e armênios estão vivendo isso na pele hoje — só para citar alguns exemplos.
Não sei você, mas em um cenário destes, eu gostaria muito de saber Loka Purusha Samya Siddhanta.
Guiar-me pela Natureza, pelo conhecimento dos panchamahabhutas e de como eles se manifestam na matéria poderia salvar muitas vidas. Aliás, este conhecimento seguramente já salvou milhares de pessoas ao longo dos milênios.
A grande questão é que, enquanto os povos originários, que detêm esse conhecimento, estão sendo dizimados nos últimos dois mil anos, a medicina moderna jamais inventou algo que seja tão prático, poderoso e aplicável em qualquer lugar do planeta com ou sem tecnologia.
Eis a importância do Loka Purusha Samya Siddhanta: o futuro de todos os seres, mesmo que o mundo como o conhecemos hoje venha abaixo.
Um abraço e a gente se vê no próximo artigo!
Eve.